CHANSON D'AUTOMNE

Les sanglots longs
Des violons
De l'automne
Blessent mon coeur
D'une langueur
Monotone.

Tout suffocant
Et blême, quand
Sonne l'heure,
Je me souviens
Des jours anciens
Et je pleure.

Et je m'en vais
Au vent mauvais
Qui m'emporte

Deçà, delà,
Pareil à la
Feuille morte.

Paul Verlaine
CASTELOS DE VENTO: julho 2007

segunda-feira

vento estivo




vento estivo

é um vento estranho este
que corre a meu lado com o verão.
um vento contínuo, magnético e sem quadrante,
que começa por um súbito e convulso tanger de harpa
que se solta rebelde dos beirais do crepúsculo
para logo se converter em comoventes vagidos
que trespassam as frinchas dos umbrais nocturnos.
desprende-se então em pungentes queixumes
e a seguir perde o alento e silencia por instantes.
mas já de novo geme e chora e carpe e freme
e uiva ferozmente como um lobo.
abro então as portas e as janelas de par em par
e pergunto às arestas do silêncio e à noite atra:

“que vento feiticeiro e sem amarras é este
que em lancinantes uivos e murmúrios
flagela janelas, vinhedos e vergéis
e seca os lábios sedutores das donzelas?"

e uma voz vinda das cinzas do tempo me responde:

“o meu nome é vulturno! sou o ventrículo do grande deserto
e habito as aurículas do teu nocturno desassossego!”

[que estranho e estivo vento é este
que ébrio surge, ressurge, vagueia e perdura e
fere a noite e os deuses ocultos
urdindo com a sua mão lívida e fria
e as suas agulhas e linhas retorcidas
a minha angústia infinita e me sufoca
no meu irreparável desconchego?]


============

(...)
Et je m'en vais
Au vent mauvais
Qui m'emporte

Deçà, delà,
Pareil à la
Feuille morte.

Paul Verlaine

terça-feira

insomnia



insomnia

Saber que a minha mente vagueia
por entre espaços cartesianos
que cruzam o vazio
de incipientes laivos de tinta inanes
em teclado quase de piano

Saber que por entre sustenidos de ébano
e bemóis de marfim
recebo de Mozart e Beethoven
alegrias e angústias em sinfonias
e sonatas que projectam em mim
luz e sombras sem fim
que se mexem sem cessar na noite escura
e deixam pegadas moles
na brancura de fantasmas de pedra

Saber que a alva há muito entrou pela gelosia
e me estrangula já de dia em teias de hera

Saber que a água das minhas lágrimas
se retém numa memória de dores
de textos inacabados incolores
na fria mágoa dos deserdados
enquanto eflúvios de álcool
se caldeiam com véus de fumo
de café e de tabaco

Saber que busco a luminosa luz azul do sonho
que medra em minhas mãos febris
que calcam os minutos e as horas mortas
em desesperos de aromas primaveris

Não saber que deliro em febre por entre os lençóis
e que no orvalho da aurora amarga
quando Vénus se apaga nos arrebóis
em vez do sublime rosto que procuro
vejo mutantes teclas de computador
que se soltam e voluteiam no escuro
coladas à ilharga dos bemóis

quinta-feira

Na morte de Lorca


Alberto Iglesias e outros, música do filme ‘Hable con Ella’, de Pedro Almodóvar





Eram cinco da madrugada
e cinco as negras cruzes
que cinco algozes agitavam
frente a ti Federico García
Poeta de Espanha
e do Mundo.
Eram cinco as espingardas
e cinco os rosários
que os judas na manhã fria
em nome das cinco chagas
de um Cristo distraído e ausente
em troca de perdão
do tenebroso crime recitavam.

Oh, horror dos horrores!
Como os teus terríficos
sonhos recentemente vividos
de damas de atros véus
e negros crucifixos
se iam cumprir nos idos
de um Agosto triste!

Nas faldas da “sierra de Alfaguara”
junto à “Fuente de las Lágrimas”
tendo por fundo a bela Granada
que em “Elegía humilde” cantaste,
cinco balas cegas
disparadas pelas negras garras
do fascismo trespassam o teu coração.

Eram cinco da madrugada.

Os tiros vêm de trás.
Os assassinos não têm coragem
de ver o rosto puro dum inocente,
e morres de pé
virado para a tua querida Granada.
O teu corpo baqueia
e o teu rosto beija
a sacra terra andaluza
que comunga do teu sangue
enquanto a ténue brisa afaga
os teus cabelos de ébano.

Às cinco da madrugada.

São cinco as musas que te choram
neste amargo amanhecer
em que a deusa Aurora
juntou as suas rubras lágrimas
à terra de sangue
de uma colina de Granada
depois das oliveiras da noite
em círios de azeite te chorarem.

Que noite escura e implacável
em que a Lua amada mas ausente
cobriu o seu belo rosto
de luto e seda
e te chorou já de dia
quando te adivinhou
sob o manto da terra fria!

Quando o rouxinol elevou
em tua honra a sua litúrgica balada
as aves da alvorada guardaram o silêncio
amargo desse madrugada triste de Agosto
e os céus cobriram de aljôfares
o teu corpo exangue
numa vala comum de Alfaguara.

Eram cinco da madrugada.

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[Tu que passas pelo sinuoso caminho
que liga Viznar a Alfacar,
pára junto da “Fuente de las Lágrimas”
e descobre-te!
Em marmórea campa
de vala comum,
onde perto viçam o jasmim e o nardo,
jaz o autor das 'Bodas de sangre'
Federico García Lorca,
Poeta e dramaturgo
de Vanguarda e do Mundo
e da Espanha
que o assassinou
e que com ele morreu
nos idos dum Agosto triste.

às cinco da madrugada.]

segunda-feira

A noite em que Cupido me visitou




A noite passada, à hora em que a Sírio mais flamejava no Cão Maior, e Pólux e Castor se entretinham em fraternal cavaqueira, em meio ia a frígida madrugada. A Lua há muito se deitara por detrás das montanhas azuis do poente. Como demónios à solta, ventos inclementes e sem amarras fustigavam as portas e as janelas da minha casa na montanha, provocando um barulho ensurdecedor. Era grande o cansaço, pelo que, apesar da ventania, consegui adormecer. O livro aberto sobre a almofada era a minha única companhia na noite gelada.

Dormia o sono dos justos, quando fui acordado por várias batidas na porta da entrada principal. "É o vento" – pensei. E voltei-me na cama para continuar aninhado no meu sono reparador. Mas eis que ouço, na pausa das batidas desgovernadas do vento, vários toques na madeira da porta, suaves e compassados. Assustado pela hora tardia, pergunto:

"Quem bate a horas mortas à minha porta, acordando-me e quebrando assim o meu merecido repouso?"
"Sou eu, uma pobre criancinha que vaga gélida e sem tino, perdida nas arestas escuras da noite, pois Lua não há. Abre, não tenhas medo!"

Levanto-me em desassossego, acendo a candeia e abro a porta. Uma ventania inclemente entrou pela casa e apagou de supetão a luz débil e amarelada do candeeiro. Estremeço, pois apesar do escuro, diviso a uns passos de mim uma linda criança seminua, irradiando uma ténue luz de um branco azulado, segurando na mão esquerda um arco e trazendo a tiracolo uma aljava brilhante, de prata, repleta de flechas.

O menino elevou então a mão direita, colocou suavemente em “V” o dedo indicador e o médio, e assim permaneceu durante alguns segundos. Como que obedecendo a uma ordem divina, o vento cessou de imediato e a escuridão que enchia a casa deu lugar a uma claridade azulada, semelhante à irradiada pelo menino, mas mais intensa.
Resoluta, e sem que eu a tenha convidado a entrar, a criança deu alguns passos e, determinada, atravessou o umbral da porta, enquanto a medo eu recuava.

Em casa me está. Com ela penetrou e distribuiu-se pela sala uma fragrância tépida de incenso e rosas, apesar da frieza que invadia a noite. Quando passava em frente do velho espelho que pendia da parede da sala, estacou e compôs o cabelo louro e encaracolado, que o vento desalinhara. Fiquei aflitíssimo ao verificar que o espelho não reflectia a imagem da criança, nem a do arco nem a da aljava.

"Quem és tu, meu menino?" – atrevo-me a perguntar, tentando esconder o terrível pânico que me assaltara. "Perdeste-te de teus pais? Toma este casaco e agasalha-te. Ainda há brasas na lareira. Senta-te. Queres comer? Tenho broa de milho e um bom caldo de galinha que sobrou do meu jantar. Queres?"

“ Não tenho fome e já não tenho frio. E não me perdi de meus Pais. Estou aqui em resposta ao teu apelo.”

“Ao meu apelo?! Mas eu não chamei ninguém, meu menino! Há aqui um grande equívoco!”

Enquanto eu falava, o menino esboçou um curto sorriso, pegou no arco, colocou-lhe uma finíssima frecha dourada que retirou da aljava e, lentamente, retesou o arco e fez pontaria ao meu peito. Foi então que ouvi um rumor de asas, como se fora o latejar de pétalas duma flor magnífica embalada pela brisa. E, lentamente, a criança eleva-se no ar, pairando agora a meia distância entre o chão granítico e o elevado tecto de telha e colmo. Continua a fazer pontaria ao meu peito, com a flecha pronta a disparar. Atemorizado, grito:

“ Que fazes, miúdo? Não te fiz mal algum, ofereço-te comida e guarida e tu tratas-me assim?”

-“Não temas! Não vou magoar-te, pois esta seta não é do teu Mundo. Foi construída para mim por Vulcano, o deus do fogo e das artes metalúrgicas. Tem propriedades muito específicas. Compõem-na finíssimos cristais celestes, numa mistura de ambrósia e de ouro estelar, que irão trazer-te grande ventura e júbilo muito em breve.”
E disparou.

Ouço um breve silvo agudo, seguido de intenso silêncio. Difundindo uma luz branca e fluorescente, a seta caminha, primeiro velozmente, mas logo diminui de velocidade, em direcção ao meu peito. Tento dar um salto para o lado e desviar-me da sua trajectória. Não o consigo. Pesam-me os pés, que se grudam ao chão frio da casa. Baixo-me então instintivamente, mas vejo que a flecha, que continua a perder velocidade, muda o seu trajecto conforme me baixo ou levanto, mas mantendo-se sempre na direcção do meu coração.

Fecho os olhos, preparando-me para o pior. Decorrem breves segundos, que me parecem horas. Como nada sinto, abro de novo os olhos, e vejo que a frecha ainda vem a caminho, diminuindo ainda mais a sua velocidade. Horrorizado, vejo-a aproximar-se e penetrar no lado esquerdo do meu peito. Estupefacto, noto que não há sangue e que uma serena alegria me invade. Sinto na boca uma ardência húmida a mel e flores.

A luz que a seta irradia continua intensa. Acabou de atravessar o meu peito. Não deixou qualquer rasto. Viro-me então para trás. A farpa continua a sua trajectória rectilínea, sai pelas minhas costas e penetra no espelho suspenso da parede e desaparece.

Lá fora, no terreiro, o galo cantou três vezes, anunciando a alvorada. O menino sorri e diz-me:

“ Bem, é tempo de regressar a casa de minha Mãe, para descansar, pois vim de muito longe e caminhei durante toda a noite para vir ter contigo e com outras pessoas que necessitavam dos meus serviços. Sê feliz! A minha missão termina aqui. Já nada posso fazer por ti nem por aquela que te destinei e que acabei de visitar há momentos. Ainda hoje a conhecerás. Agora, tudo depende de vocês. Sejam venturosos e felizes. Então, já sabes quem sou?”

Não respondo à sua pergunta, pois o tempo urge, e interessa-me sobremaneira saber quem é "aquela” que "ele" me destinou. E é essa a pergunta que lhe faço.

“Sairás de manhã pelas giestas, e caminharás para poente. Encontrá-la-ás para lá da Montanha Azul, no momento exacto em que o Sol cintilar sobre os ponteiros do zénite.”
Acto contínuo, o menino dirigiu-se para a janela, destrancou com suprema agilidade os ferrolhos ferrugentos que só de tempos a tempos e muito a custo eu conseguia destravar, e abriu as portadas de par em par, sem o ranger característico dos gonzos também enferrujados pela falta de uso. Por seu lado, a gelosia subiu lentamente, sem qualquer ruído, como se accionada pela magia de um qualquer aparelho invisível. O perfil do menino confunde-se agora com a aura dos alvores do horizonte da madrugada que desponta.

Repentinamente, como se fosse catapultado para o firmamento, Cupido desaparece na imensidão do espaço, na direcção da fulgurante Vénus, deixando atrás de si um resplandecente rastro de luz.

Ouço suaves cânticos, cuja origem desconheço, que erram por toda a montanha e me entram em casa.
Vénus resplende já sobre as colinas a Oriente, chamando os pastores.
Vêem-se os primeiros laivos roxo-violetas anunciando a aurora.
Sairei logo que trate da minha higiene matinal. Não tenho fome. Sinto-me bem. Sinto-me feliz. E apresso-me a partir na direcção da Montanha Azul…



(texto inspirado numa ode de Anacreonte)


quinta-feira



Tú eres cauce
y yo soy agua
-somos río-
agua sin bridas
y en tropel,
a merced del capricho
de tu lecho voy:
izándome en el aire
abofeteando orillas
incustrándome
en ocultas pozas
que creaste.


Y así
voy
bogo
titubeo o
permanezco
mientras
no se abra
la consistencia
de tu fuerza
y yo
me pierda en ella.

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A tradução em português, que espero não fuja ao essencial:

Tu és leito
e eu sou água
-somos rio-
água sem bridas
e em tropel,
à mercê do capricho
do teu leito vou:
içando-me no ar
acometendo as margens
incrustando-me
nas ocultas poças
que criaste.

E assim
vou
remo
vacilo ou
permaneço
enquanto
não se abra
a consistência
da tua força
e eu
me perca nela.



Autora: ANATEMA

terça-feira



a rosa é um momento raro
de rubor partilhado...

o apogeu da rosa
nas mãos que a maceram

o perfume atraiçoado
da rosa que espera

a rosa incinerada
no fogo da Primavera

a rosa é a espera
e o encontro
o travo perfumado

a rosa é um grito
mudo, a rosa no asfalto


Autora: TÂMARA

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