Deixai dormir as palavras
Dead Can Dance - Into the Labyrinth - “Yulunga (Spirit Dance)"

Deixai dormir as palavras
Imaculadas e inócuas
as palavras dormem
no seio do dicionário
o sono profundo dos inocentes.
Não as acordem.
Ouçam simplesmente o seu silêncio:
metódico, alfabético, inquietante.
Úbere semeadura esta
que tanto medra em bons viveiros
como na mais agreste tojeira.
Dentro de um dicionário,
do caos ao verbo,
cabe todo o Universo:
sem eufemismos
sem hipérboles
sem metáforas
sem calendário.
Por vezes é um bom semáforo
o meu dicionário:
sabe soltar o verde da esperança
cuidar do amarelo da temperança
e parar no vermelho, por segurança.
Mas deveria ter mais sinais
o meu dicionário.
Deveria acautelar-me
porquanto nele comungam
vida e morte
respeito e desprezo
nobreza e preconceito
ciúme e remorso.
Nele crescem lado a lado
a iniquidade e a justiça
a bondade e a ferocidade
a irracionalidade e a razão
a fidelidade e a traição.
E, como se tudo isto não bastasse,
o verbo e o caos
vagueiam perdidos pelo meu dicionário,
no particípio e no presente,
como sempre,
desde o princípio.
Tantas são as vezes
em que a dúvida se sobrepõe à certeza
o ódio ao amor
a indignidade à nobreza
a cobardia à coragem
a penúria à riqueza
a guerra à paz.
Ventos oscilantes e incertos
deambulam nas dobras vazias do tempo
sobre as searas incendiadas
que medram no meu dicionário.
Deixai, pois, dormir as palavras!
Deixai-as dormir, deixai!