Dead Can Dance - Into the Labyrinth - “Yulunga (Spirit Dance)"
Deixai dormir as palavras
Imaculadas e inócuas
as palavras dormem
no seio do dicionário
o sono profundo dos inocentes.
Não as acordem.
Ouçam simplesmente o seu silêncio:
metódico, alfabético, inquietante.
Úbere semeadura esta
que tanto medra em bons viveiros
como na mais agreste tojeira.
Dentro de um dicionário,
do caos ao verbo,
cabe todo o Universo:
sem eufemismos
sem hipérboles
sem metáforas
sem calendário.
Por vezes é um bom semáforo
o meu dicionário:
sabe soltar o verde da esperança
cuidar do amarelo da temperança
e parar no vermelho, por segurança.
Mas deveria ter mais sinais
o meu dicionário.
Deveria acautelar-me
porquanto nele comungam
vida e morte
respeito e desprezo
nobreza e preconceito
ciúme e remorso.
Nele crescem lado a lado
a iniquidade e a justiça
a bondade e a ferocidade
a irracionalidade e a razão
a fidelidade e a traição.
E, como se tudo isto não bastasse,
o verbo e o caos
vagueiam perdidos pelo meu dicionário,
no particípio e no presente,
como sempre,
desde o princípio.
Tantas são as vezes
em que a dúvida se sobrepõe à certeza
o ódio ao amor
a indignidade à nobreza
a cobardia à coragem
a penúria à riqueza
a guerra à paz.
Ventos oscilantes e incertos
deambulam nas dobras vazias do tempo
sobre as searas incendiadas
que medram no meu dicionário.
Deixai, pois, dormir as palavras!
Deixai-as dormir, deixai!
"Abalarei os céus, e a terra, e o mar, e a terra seca..." (Ageu 2:6-21)
Hoje, venho dizer-vos que me agastam e entristecem as palavras. Sou o errático andante que caminha descalço ou de sandálias pelo deserto das palavras, e as ama e anatomiza, as detesta e anatematiza, e volta a anatomizar e a amar e de novo a abominá-las e a anatematizá-las… e a amá-las…
Às palavras, a esses seres estranhíssimos que permitem amar e odiar em simultâneo, que nos amarram e escravizam e nos acenam depois com ventos de amor e liberdade, para voltarem de novo a acorrentar-nos sem piedade, há que rasgá-las, fendê-las, rachá-las, ateá-las e incendiá-las como lenha seca que arde em gigantesca pira - piramidal pira, diria, não fora a cacofonia - em sinuosas e ondulantes flamas de sangue.
Haverá estilhaços incandescentes e brasas incendiando todas as memórias. E haverá fumo e uma inundação de luz e cinzas pairando. Perfurando o silêncio algemado e trucidado em serpejantes labaredas. E haverá, outrossim, farpas. Dolorosas farpas rasgando e lacerando profundamente a pele, a carne e as ansas, qual mítica fénix de asas dilaceradas.
E dessa inundação de cinzas e de restos carbonizados, as palavras hão-de fluir de novo e voar, sopradas pelo vulturno nas noites soturnas e sem luar, ou nas manhãs e tardes aprazíveis e solares, impelidas pelo brando zéfiro, em eminentes vertigens de fénix renascidas.
Redescubramo-las e reinventemo-las, estáticas ou dinâmicas, desde o início de todas as linguagens.
Como na língua dos Hervos, que aqui vos deixo em soneto, neste meu deserto de vento e areia:
Concerning Hobbits (Shire Teme), do filme The Lord of the Rings.
Soneto aos Hervos
Baixa lúcido o sol sobre os montíolos, E já a luz sidárvia dos sidócitos, Elíptica, tremula entre os gladíolos, Trespassando as vidraças dos esmócitos.
Crescem na tarde lânguidos ortíolos, Em atávicos salmos tão bartócitos, Que agitam, paladinos, os pecíolos Das hastes alongadas dos acrócitos.
Ouve-se ao longe uma harpa merencória Que aflita geme com a frauta lírica, Enquanto a noite desce transitória.
São os hervos que voltam da hortírica Com uvas de corinto e fruta hespória E mil sorrisos de candura onírica.
São os Hervos um povo gentil e humilde, amante da natureza, que habita os Vales Solitários do Nunca, contíguos à Terra-do-Meio, onde vivem os Hobbits, seus parentes próximos, que amam igualmente a natureza, a paz e o seu semelhante, e não se importam, minimamente, com o que se passa no resto do mundo, que, alías, não conhecem nem nunca ouviram falar. P.S.: as palavras em itálico constam dos dicionários dos Hervos, e em nenhum mais. ;)
Quem te traz, planta solitária do deserto, ao longo dos séculos?
Quem te alimenta e às tuas flores na estéril gleba?
Que braço, que mão, que asas, que anjo ou demónio
te conduzem e protegem na cela aberta da tua desmedida solidão?
Que ventos selvagens e sem amarras arrebatam os teus alados periantos
e os transportam por sobre as dunas do tempo
pela planura imensa e faiscante?
Que hálito de inclemência e sal é este que sopra do largo?
Por que afagas nas tuas asas aqueles que te consomem e queimam ao longo dos séculos?
Donde a força que os desgoverna desde os indecisos confins?
Donde o ânimo que os faz subir as altas muralhas
de fragas e penhascos da desventrada Costa dos Esqueletos,
qual caravana de serpentes enoveladas e arrastadas
por sobre as tuas verdes asas, como demónios violadores?
Como sobrevives, se dentro das implacáveis labaredas?
Como resistes, eterna e glauca e sempre fresca
na envoltura de cal da sáfara planície de restos?
Como seguras o tempo primário e imóvel
nas areias de sal e de vento e de fogo
que fustigam e torturam as tuas enigmáticas brácteas?
E o Sol, por que o recebes de braços abertos,
quando é ele que queima o orvalho transparente e breve
que haures na lentidão silente das tuas madrugadas?
Que umbráculos acautelam a tua semente incendiada
quando o astro-rei fulgura sobre os ponteiros do meio-dia?
Por que o recebes com o teu sorriso secular e aberto,
a ele, que abrasa as areias e as pedras à tua volta
até às pálpebras vermelhas do crepúsculo?
Que espúrias cinzas te renascem,
gloriosa fénix africana, ao longo das centúrias?
Donde os plangentes e lacerados lamentos de harpa
que te amanhecem e trespassam de perpétua solidão?
Tu que tudo sabes e perdoas, flor solitária do deserto,
tu que sofres no mar de areia, de fogo e de vento
que se alevanta do mar frio da Costa dos Esqueletos,
diz-me… diz-me… terna amiga: "como se cura a solidão?"
Quero dormir esta noite dentro dos teus braços milenares.
Abrigado pelas tuas asas verde-jade.
Nas margens precárias do meu leito,
tendo por limite as paredes oblíquas do meu quarto de vento e areia,
quero beber contigo o frio e doce orvalho da madrugada.
E quando a Lua plena iniciar a descida pelas escadas azulinas do zénite,
quero ser um dos navios naufragados.
Sem mastros, sem velas e sem leme,
vestido de vento e espuma, vogarei contigo
em liberdade de algemas pelos lençóis de bruma do Golfo
e, desgovernados, adernaremos
por sobre os espelhos de areia e algas da Praia dos Esqueletos.
No meu sonho alado e sem âncoras,
quando o mel lunar encher de oiro o nosso território,
perguntar-te-ei, de novo, como se preenche o vazio da solidão.
E tu dir-me-ás então, e tão-somente, que frágil é o corpo, e efémero é o sonho.
E eu sei, amiga, que por aí te ficarás.
E juntos adormeceremos de mãos dadas
sob as horas ermas de silêncio e solidão sem limites
que nocturnas e demoradas tombam
por sobre o chão lunar do mítico Namib.
Zénite
Nota: É difícil avaliar a idade que estas plantas atingem, mas pensa-se que possam viver mais de 1000 anos. Algumas poderão ter mais que 2000 anos. Fonte: Wikipedia. http://en.wikipedia.org/wiki/Welwitschia_mirabilis
Pavana triste pela mocinha vitimada pelo coronel (in)sensível
Gabriel Fauré (1845-1924), Pavana, opus 50.
Sim, quinze anos tinha no seu corpo em brasa a infeliz mocinha que não tinha casa. Tinha tranças d’oiro e a pele alvacenta, tu foste o primeiro a arrastar-lhe a asa naquele Janeiro dos anos setenta.
Ela pai não teve sequer tinha mãe não tinha sapatos não tinha vestidos não tinha ninguém, só dias sofridos.
Não havia lua não havia estrelas nem sequer abrigo, a casa era a rua da pobre donzela que não tinha amigos.
O seu corpo grácil de pele de alabastro jamais resvalado em sua puridade não tinha cadastro mas foi presa fácil dum lobo esfaimado.
Se um dia voltares à estrada velha no negrume agreste, detém-te e descobre-te, acende uma vela.
Verás numa faia - ou “feral cipreste”? - a seta-coração bem como a mensagem que a bela catraia em aflito pranto no tronco entalhou nessa noite túmulo do seu corpo espanto. Verás, para cúmulo, que foste o primeiro e também o último a dar-lhe dinheiro.
(Zénite)
NOTA: a expressão “feral cipreste” foi retirada de "O Noivado do Sepulcro", de Soares de Passos.
já a seguir, o bolero do dito coronel:
Bolero do coronel sensível que fez amor em Monsanto
Eu que me comovo Por tudo e por nada Deixei-te parada Na berma da estrada Usei o teu corpo Paguei o teu preço Esqueci o teu nome Limpei-me com o lenço Olhei-te a cintura De pé no alcatrão Levantei-te as saias Deitei-te no banco Num bosque de faias De mala na mão Nem sequer falaste Nem sequer beijaste Nem sequer gemeste, Mordeste, abraçaste Quinhentos escudos Foi o que disseste Tinhas quinze anos Dezasseis, dezassete Cheiravas a mato À sopa dos pobres A infância sem quarto A suor, a chiclete Saíste do carro Alisando a blusa Espiei da janela Rosto de aguarela Coxa em semifusa Soltei o travão Voltei para casa De chaves na mão Sobrancelha em asa Disse: fiz serão Ao filho e à mulher Repeti a fruta Acabei a ceia Larguei o talher Estendi-me na cama De ouvido à escuta E perna cruzada Que de olhos em chama Só tinha na ideia Teu corpo parado Na berma da estrada Eu que me comovo Por tudo e por nada
trago comigo o
grito da águia solitária esse brado lancinante e selvagem que ecoa pelos desertos de todas as miragens em cujas dunas de
poeira vento e memória escorrem e perduram inteiras as
cinzas das minhas mágoas.
a sombra do vazio
viajo num reino de
sombras e claridade.
um reino de alucinações efémeras
que
deslumbram os precipícios e os astros.
caminho sob os
relâmpagos
que flagelam os despenhadeiros da escuridão
e
vogo insone pelos espinhaços nus da noite
numa nave sem âncora e sem
mastros.
encontro-me no ponto exacto do labirinto
onde as folhas perdidas mudam de direcção.
ouço a
minha respiração ofegante.
sinto o batimento do coração
e
tenho a percepção distinta
de que me perdi e não te alcanço,
caminhando vacilante
contra a eminência de todas as
manhãs
nas asas de um vento estranho
sem norte e sem
esperança.
com fome e sede tantálicas
navego
à deriva rente aos escolhos
e meandros das esquinas do tempo
e soçobro nas águas turvas que me cercam.
como uma flâmula azul tremulando
sobre o espectro do mastro da
mezena,
só um lugar geométrico permanece.
a
saudade lisa e nua da sombra da tua sombra
entardecida sobre os
nocturnos vértices
do vagante vulturno.
Excalibur, do pintor Boris Vallejo (contemporâneo).
- Dizei-me, ó Lua emigrante, Lua nobre viajada, Se vistes a minha princesa Durante a vossa velada Pela pátria portuguesa.
"Andam tantas cavaleiras Por esta terra sagrada, Dá-me tu, ó cavaleiro, Os sinais da tua fada."
- Trajava uma alva túnica E sobre esta um terno manto Que cintilava ao luar. Seus cabelos são de fogo, Olhos índigos de mar. Na dextra mão uma pena, Na sestra um fio de tear Que lh’ ofertou Ariana; A pena p’ra m’escrever, O fio p’ra m’orientar. Tem lábios cor de carmim E tal finura o seu rosto, Que parece um querubim.
"Pelas arras que me dás, Por aqui a vi passar; Cavaleira de armas brancas,* Em seu cavalo tremedal,* De dia sorria ao Sol, Dançava à noite ao luar; Seguiu p’ra terras de Espanha, * Areias de Portugal, * Ou terá sido Alemanha? Levava cavalo branco, Bebia pelo Graal, Deixou lia de oiro fino, Fulgor de prata e cristal, Qual farol alexandrino P’ra saíres da espiral."
- Que hei-de dar-vos Lua amiga Pelas novas que me dais? Dar-vos-ei uma arca de oiro P’ra vossos raios arrecadardes.
"Guarda lá a tua arca Que te custou a comprar."
- Dou-vos um véu de platina P'ra vosso halo enfeitar.
"Ofertai tu esse véu, Trovista de madrigal, À tua infanta querida, Pois que a mim me basta o céu E o sol da minha vida."
- Que então vos posso dar?
"Eu, de ti, não quero nada! Pede à princesa que cante, Pede à princesa que dance, Quando é cheio o meu luar; Rumba ou mazurca de fogo, Tango ou valsa, tanto faz, Se ela acolher este jogo, Todo o mundo a vai amar." ___________________________
*“Palavras assistidas” - (Nau Catrineta e D. Beltrão).
o único grito que ressoa na noite não é de Munch, é meu. um grito selvagem e de sal que vagueia incandescente e sem amarras pelos umbrais frios que esquadriam os meus castros de vento e areia.
as palavras balançam num trapézio sem rede. nada me favorece. nem as estrelas. em peregrina imprudência, divago pelas trevas e sigo em círculos, sem bússola nem polar, numa prisão sonora de correntes.
um bater de asas contínuo e um interminável galope de cascos costuram o orvalho das minhas madrugadas. possante e em clarão, Pégaso surge e orbita à minha volta mas não estaca nem me leva no seu dorso velutíneo.
um dia cumprirá a promessa que deixou cativa, de me conduzir, como se nas asas de um vento estranho e sem retorno, a colher os frutos em estrela-de-água que sob os seus cascos brotam das pedras vivas.
Antonin Dvorak, Serenata para cordas, opus 22 (1875), fragm. “Moderato”
sílabas de lume
por tuas mãos se desfaz a neblina. mas diria que não é névoa, chuva ou zimbro o que escorre das arestas molhadas e cavernosas do gélido crepúsculo.
são sílabas de fogo e sombras. sombras cálidas, diáfanas, perfumadas sob o silêncio do entardecer. um silêncio sem margens que se dilata em combustão de lume brando por entre as flores rubras do topo das colinas e o balanço curvilíneo dos flancos.
há uma sede crepuscular, restos de luz e um sopro de essências nocturnas que cortam as sombras das árvores e a superfície lisa das coisas.
procuro-te assim no crepúsculo pando num refúgio de sombras e de raizes.
ainda antes que o lençol da noite se insinue soletro ponto por ponto as sendas do regresso. nelas me desoriento e distancio.
entanto, já muito perto do vértice do caminho, no ponto exacto em que indiferentes as pedras esmagam o vazio, o zéfiro traz-me um perfume intenso a chuva doce e a maçãs frescas.
e é nesse preciso e isolado ponto, em que só o aroma da tua sombra me vale, que me abrigo, aquecido pelo lume que cresce da fragrância anil que orla o teu corpo de deusa.
nessa sombra me adentro, aqueço e permaneço. eu, que sou incêndio e cinza por cumprir.
na linha azul do horizonte infindo, repartido entre a luz da manhã clara e a brumosa sombra que a noite lavra, levanta-se, na geometria das trevas e dos dias, o solstício do tempo e da palavra.
numa inundação de luz, é esse o momento exacto e estático em que o astro-rei mais se afasta do equador. a noite escura serei. tu, o dia redentor.
Luís de Camões (1524-1580), por François Gérard(1770-1837)
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, Muda-se o ser, muda-se a confiança; Todo o mundo é composto de mudança, Tomando sempre, tomando sempre novas qualidades.
E se todo o mundo é composto de mudança Troquemos-lhe as voltas qu’ inda o dia é uma criança.
Continuamente vemos novidades, Diferentes em tudo da esperança; Do mal ficam as mágoas na lembrança, E do bem, e do bem, (se algum houve...) as saudades.
Mas se todo o mundo é composto de mudança, Troquemos-lhe as voltas, qu’ inda o dia é uma criança.
O tempo cobre o chão de verde manto, Que já coberto foi de neve fria, E em mim converte em choro o doce canto. E em mim converte, e em mim converte em choro o doce canto.
Mas se todo o mundo é composto de mudança, Troquemos-lhe as voltas, qu’ inda o dia é uma criança.
E afora este mudar-se cada dia, Outra mudança faz de mor espanto: Que não se muda já como soía Que não se muda, que não se muda já como soía.
Mas se todo o mundo é composto de mudança, Troquemos-lhe as voltas, qu’ inda o dia é uma criança.
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Tempos de desventura, estes, em que os vampíricos e cevados extorsionários sugam e subtraem às massas o pão de cada dia, para ampliarem, assim, as suas já tão fartas tulhas. Tempos lívidos de servidão e de miséria, falhos de liberdade, de justiça e equidade e até do lume vivo dos afectos. Tempos a urgir profundas mudanças e reformas, antes que seja, de todo, impossível trocar-lhe as voltas.
Distanciando-se das obtusas complicações do presente, trazia saudosamente à memória o tempo primordial e simples, um nostálgico caleidoscópio de cores e brilhos irradiados pelos espelhos de luz das ribeiras da sua infância, repletas de juncos, libelinhas, nenúfares e risos de crianças.
Zbigniew Preisner, música do filme “The Beautiful Country” (2004)
quando estás mais longe, e a névoa sobe velutínea e litorânea rente às azulinas escarpas, subo lentamente as escadas do labirinto das nossas memórias e entro no sótão esquecido de todas as reminiscências, utilizando a chave de cristal que um dia recebi da concha aberta da tua mão generosa.
abro então as arcas encouradas uma a uma, aonde furtivas se enclausuraram as nossas alegrias e mágoas, e onde os doces sorrisos se caldearam, nos dedáleos meandros da memória, com a saudade que orvalha e magoa e jubila na dispersão dos dias. na convergência dos segredos, sento-me em seguida numa cadeira de balouço envelhecida, e reabro os livros velhos e leio as cartas antigas, para mim sempre novas, como se pétalas frescas e perfumadas de rosas vermelhas eternamente renovadas.
depois, tu entras pelo silêncio da noite e sentas-te a meu lado, e sorris-me. no ardor das horas mansas que não morrem, ao som de uma qualquer estação de vivaldi, de uma sinfonia de beethoven ou de uma sonata de bach. com perfumes a cravo e magnólia, lentamente rescendendo das arcas de todas as memórias. e ali ficamos de mãos dadas, por dentro do nosso silêncio cíclico, até que jano abra, pela alvorada azul das estrelas, as portas a um novo dia.
aqui me encontro na margem ocidental do faraónico nilo quando o sol se tinge de sangue por detrás da grande pirâmide preparando-se para mergulhar nos infindos horizontes da planície de gizé e vejo e sinto a grandiosidade milenar e mítica do egipto antigo e dou por mim rodeado de uma babel humana que parece ter tanta dificuldade em entender-se entre si e com os árabes como estes com os camelos e distraído interiorizo que o egípcio com quem tomo o chá do crepúsculo provavelmente é descendente de kéfren pois tem as feições da esfinge que por sua vez as terá herdado daquele faraó
e é então que dou conta do que me trouxe a estas paragens de areia e pedras que esmagam o vazio e o silêncio e surpreendo-me quando a enigmática figura me fita com o ar interrogador de quem sobreviveu à poeira fina das palavras e às cinzas do tempo espelhadas nas feridas profundas dos milénios que lhe sulcam o rosto e respondo à sua silente pergunta que não estou ali para tentar adivinhar o seu misterioso arcano e sim para lhe pedir que me ajude a decifrar o mito da vida e do amor ou seja tentar encontrar a chave de ouro do enigma que conduziu theseus a ariadne mas ela somente me diz que todo o enigma é um fio que se desalinhou da meada e resvalou pelas sombras escorregadias e frias do labirinto
e que é tão difícil saber qual o que conduz ao minotauro como o que leva a ariadne e acabo por acrescentar que já não quero que decifre nada porque de repente apreendi que os mitos são para respeitar e admirar sem condições tal como as deusas e os deuses de todos os olimpos e tudo isto lhe digo e repito várias vezes até que a esfinge num delírio inconsciente reflectido na dor lancinante que lhe assoma ao rosto e chorando grossas lágrimas de sol e areia que o cálido e abafadiço suão espalha pela planície ainda inflamada de luz do véspero me diz que nem ela é capaz de decifrar o enigma da sua própria existência quanto mais o da vida dos outros pois que julgava ser coeva da pirâmide de kéfren quando afinal tem mais cinco milénios que esta a fazer fé no que lhe dizem os humanos que violam os templos e os abismos sagrados da terra antiga
e assim à hora crepuscular que contorna o vazio de penumbra e areia parto amargurado deste deserto inóspito e tumular ao constatar que os enigmas são isso mesmo incógnitas adivinhações ou mitos que nem a esfinge agora um silencioso e compacto fantasma de pedra adormecido é capaz de decifrar e parto como disse na altura em que reinam as cobras e os escorpiões que são os melhores guardiões dos templos e túmulos perdidos dos reis do ermo que não querem ser roubados e ao mesmo tempo como se por entre flores corresse sinto-me feliz por saber que o teu doce discurso saciará o meu silêncio a sós na saudade infinda inscrita no rosto cativo da lua e das estrelas e anunciada nas areias e pedras escaldantes deste deserto assaz longe das margens precárias das cidades e das árvores apesar de parecer tudo tão perto da mensagem inicial e das promessas perdidas que vagueiam cindidas ao meio pelos vales estreitos da claridade cintilante que veste todas as miragens
recordarás os rostos macerados no cilício das horas vergados sobre os chips de silício no silêncio escravo. recordarás os jovens ungidos de silicon valley silentes morfeus do teu sonho alado e deles receberás o teu passaporte de cidadão global.
(Zénite, in Fulgor da Língua – Coimbra Capital da Cultura 2003)
Em humilde preito de admiração, reconhecimento e apreço, dedico as modestas quadras que se seguem ao ilustre Poeta Adolfo Correia da Rocha, que decidiu, em 1934, adoptar o pseudónimo de Miguel Torga, numa prova de veneração à urze, essa humilde, bravia e espontânea planta que cresce no chão agreste de todo o Portugal e, particularmente, nas fragas e serranias do Norte.
Corresponde a torga, no reino vegetal, à força, à robustez e à energia que sempre caracterizaram a consciência do Poeta e do Prosador, na sua acutilante insubmissão ao obscuro sistema socio-político então dominante. Como a urze relativamente à natureza, nunca se deixou subjugar pela agreste e dominadora natureza humana (leia-se "desumana").
a flor da torga
quando morno o vento sopra da serra e os deuses ávidos beijam as cumeeiras quando subtil o mel lunar afaga a terra e o trigal latesce verde pelas jeiras
quando na madrugada cor-de-rosa a brisa desce lenta das escarpas e em breves ais trespassa voluptuosa os ramos das queirogas como harpas
quando do céu a alvura dos rebanhos desce à urze branca que nas alfombras se mescla em tons de roxo e de castanhos em veludos sépia de luz e sombras
quando a alva se incendeia em mil fogueiras e o sol doira os cabelos de titónia é abril mês de páscoa e sementeiras o que flora e pubesce a casta torga
é então que a urze abre os roxos lábios que a flava abelha oscula e o sol afaga nas asas hialinas dos ventos sábios convertendo a charneca em nívea plaga
és a flor da torga no ermal granítico, espiga de ceres no alentejo errático, gentil welwitschia no namib mítico, magnólia de alabastro, lírio aquático.
és a raiz do nardo em poema épico, o rastro do zéfiro em cântico extático, sacro sal da terra, dócil cardo ascético, a primorosa pena de estilo ático.
és a esfinge envolta em cabal mistério, a escuna que flaina o ameno galerno, és a estrela de oiro no cerúleo etéreo, doce primavera depois do inverno.
em meu castro de vento, agora cinéreo, és o meu fanal e nele me prosterno.
Manuel de Falla, El amor brujo - Danza del fuego fatuo (1915) - Paco de Lucía (guitarra).
do amor como jogo e arte
o amor é um jogo de regras mil e todavia sem regras e apesar disso quiçá ainda por tal não só é jogo é arte é mistério e fantasia de poeta que o sonha luz imortal ou de joalheiro que lavra e cinzela em metal fundente as jóias em linhas mestras ainda e tanto em espiral que por vezes cedo antes ou depois se quebram quando se parte um elo da corrente
o amor é semente guiada pelo vento que busca a água algures além na fonte longe ou perto acima abaixo ou ali defronte e desabrocha em flor aqui e alhures ali no monte sobretudo e sobremodo eternamente
o amor vive de beijos e é de abraços tão carente que bem ou mal melhor ou pior ainda e tanto como outrora antigamente se alimenta de si próprio e é das palavras tão sedento que é tudo na vida e muito mais tal e qual provavelmente que tantas vezes quão demasiadas porventura não somente é paz e encantamento como é fonte de pranto e amargura
foto copiada do blogue http://atributos-1.blogspot.com/
Tempos de desdita, estes. Tempos de chuva e de vento e de gelo e de fome! Tempos de míngua e de dor e de apertos, em que o céu, a terra, o mar e os homens - alguns homens - ensandeceram e se uniram em conluios de desmedidos desconcertos. Dissolutos tremedais, estes dias lívidos cada vez mais longos, porta-ordens de escassezes de pão, de liberdade, de justiça e equidade, e até do lume transparente dos afectos. Tempos de ventos sem quadrante, gelados, sibilantes, em que as noites, apesar de diminuídas, crescem de vazio por dentro e desembocam, sibilinas e sem mantas, nas manhãs frias. Partos abortivos da natureza e dos homens, dissaboridos espaços de desgraça e servidão, estes dias e noites sem candeias nem brasas acesas, mas também sem vivalma que brade bem alto, das profundezas abissais da alma: NÃO!!!
Tempos de Qualquer Dia como o é o tempo de todos os dias… em que só os cevados vampiros não têm invernos de apertar o cinto. Se não, vejamos, ou melhor, ouçamos:
Frederic Chopin, Nocturno, opus 9, fragm. n.º 2 (1831)
Nocturnas palavras
Escrevo sob a alpendrada, por entre as colunas. De um universo de centenas de milhares de vocábulos, procuro as palavras certas, as que devorem a escuridão abismal que me vai na alma. Onde as demandarei? Na lua incerta oculta pelas nuvens de incêndio e sangue que espelham o clarão suspeito da grande cidade, na outra margem? Não! Nas folhas da minha figueira mansa? Não! Antes fora brava, e provavelmente nela as encontraria. Nas laranjas verdes que, vacilantes, oscilam ao sabor da brisa, e que há muito olvidaram os aromas das flores? Também não. No rumorejante canavial do campo defronte, convertido em negro avejão de asas laceradas a partir do lusco-fusco? Porventura, mas não vou sair da prudente placidez do meu território para o saber.
Será que é esta luz de néon branca e fria que vem do alto do madeirame, como se este fora o cavername de um navio fantasma, que queima as raízes da noite sem margens e as minhas e me sufoca a mente, que não me deixa alcançar as palavras? Ou será a claridade asfixiante que ressalta da frígida indiferença do cristal de vídeo que tenho à frente? Talvez.
Na madrugada da noite que avança sem âncoras, como encontrar a medula grega do verbo, a genuína essência da seiva que corre ao longo das linhas oblíquas e labirínticas da história, que há muito partiu de Knossos nas asas estranhas de um vento pós-equinócio?
Apago todas as luzes e saio para a terra nua. Encosto-me ao tronco esguio de um choupo que num anúncio prematuro de Outono, quiçá de Inverno, a pouco e pouco se vai despindo.
Um sopro oloroso e húmido de sudoeste desliza continuamente pelo meu corpo. Tento agarrá-lo com as mãos e depois com os lábios, sorvendo-o, sedento, a longos haustos. Não corro risco de ser surpreendido na loucura do gesto, pois não há vivalma por aqui. Estou tão só como a lua silente lá no alto. Apenas o latido doloroso de um cão perfura de vez em quando a estranha quietude que me cerca.
Pergunto então à noite: “onde escondeste as palavras, que as não encontro?”
Taciturna, a escuridão devolve-me o seu eco silencioso, envolve-me no seu manto viscoso e sombrio e cinge-me com as suas algemas de orvalho, enquanto desprendida a lua se esconde por detrás de um algodão vermelho-vulcânico.
Hesitante, saio de onde estou e caminho por entre as árvores. O ritmo dos meus passos conjuga-se com a métrica da entoação muda da respiração da terra.
A rainha da noite volta a aparecer e a flutuar nos espelhos indistintos do pequeno lago ali perto. Cintila graciosa como se ensaiasse uma dança de nenúfares. É uma “lua sobre a água”. E porque a expressão é de García Lorca, peço encarecidamente a este que me ajude.
Distante e impassível, Lorca diz-me que não me apoia porque não gostou dos versos que um dia lhe dediquei. E acrescentou: “Todo o mundo que ser poeta. No entanto, é mais fácil ser farmacêutico... E ser farmacêutico até é bem difícil." E afastava-se já, quando ouvi a sua voz em surdina: "Porque simplesmente não desistes?”
Não lhe respondi, mas pensei para dentro de mim: “fossem minóicas como as de Knossos estas colunas e de pedra antiga o madeirame da abóbada, e as palavras fluiriam como se provenientes da liquidez da fonte de Clepsidra, a que é alimentada pelas águas puras e cristalinas que escorrem das altas fragas e aclives da longínqua Messénia, na qual as ninfas davam banho a Zeus-menino.
Por entre os destroços e ruínas que povoam o meu espírito, as sílabas assemelham-se a fantasmas baços dançando sobre o silêncio indeterminado que paira sobre a lua do lago. Desisto então de procurar as palavras certas nesta noite de silêncio opressivo entrecortado pelos latidos magoados de um cão triste e pelos raios de luz imprecisa derramados por uma lua vaga-lume de novo oculta por nuvens opacas.
O lago está agora escuro como breu. Reacendo as luzes e volto ao cristal de vídeo. As claves mudas alinhavam sozinhas as palavras que não encontrei.
Vou apagar de novo todas as luzes, e talvez as palavras, e sentar-me tranquilamente a um canto a fumar. Não, não apagarei as palavras.
Descrevendo luminosas parábolas, só o meu cigarro incendeia a escuridão. Por entre os balaústres e as colunas vermelhas que constituem a minha única protecção contra o insustentável cavername que segura noite, apenas a minha solidão e a do meu cigarro existem e permanecem. Estou em Knossos. Na última curva da madrugada.
Entre uma e outra âmbula há um tempo oculto, silencioso, que corre vermelho de sangue na ampulheta do teu corpo.
Céu e terra duas âmbulas ligadas pela cintura fina que ajusta dentro das lâmpadas dos meus olhos a tua silhueta inteira e divina de deusa virgem.
Na superior o fogo do céu que deseja. Na inferior o lhano prazer da terra, o que alberga e nutre o gérmen do trigo.
Numa incandescência solar de mel e romãs tudo cresce e prolifera rente à promessa dos dias num crepitar de chamas, qual cordão de umbigo saído do lume de místicas raízes.
[Assim medram florescem e atravessam a respiração dos dias e da terra os renovos que cumprem e iluminam de brilhos a Primavera.]
David Mansfield, música do filme Heaven's Gate(1980). Director: Michael Cimino.
nas longas noites que do céu caem frias de inverno no mês de jano que imperturbável cresce enquanto o glacial bóreas talha sob o alvor do luar os harmoniosos sincelos quero incendiar-me no fogo dos teus lábios no fulgor dos teus olhos no verão dos teus braços no veludo quente da tua pele e adormecer sob os altares de vento da primavera dos teus cabelos.
uma lâmina de frio vara o silêncio das vidraças do meu quarto e desce inquieta sobre o teu xaile de lã virgem estás longe muito longe! presente apenas o xaile e o dezembro gélido e estranho que navega na célere vertigem de dobrar o solstício para atingir o natal
abro a janela
um silêncio feminil de luar suspende-se nocturno e desce das copas das árvores trespassa os umbrais e insinua-se cheio pelo quarto
lânguida e doce a claridade da lua derrama-se e fulgura por sobre a seda núbil do teu corpo adiado
num incêndio de êxtase e mel surges-me num afresco por sobre os lençóis da minha noite
a bordo dos meus dedos de argila navegam já todas as tintas e os seus segredos mas os dedos ansiosos e trémulos como a minha mente em vez de avivarem a cores quentes a tua presença apenas conseguem esboçar uma réplica da tua ausência que persiste agora no vazio penumbroso e sombrio de um retrato a sépia
(entre os lençóis e as árvores o epicentro da minha saudade)
Sobre o vale do Nilo cai triste a madrugada.
Na feral câmara a incenso perfumada,
conservado em bálsamos em esquife de ouro,
jaz morto Osíris, o rei-deus do Além e da fertilidade,
esquartejado por seu irmão Seth, deus dos infernos e da escuridade.
Sobre o corpo do amado esposo debruçada,
Ísis, a excelsa rainha-deusa, beija-lhe o rosto e chora em silêncio.
Oh, quão profundo é o amargor que lhe lavra a alma!
Observam-na, de ar grave, escribas e guerreiros,
enquanto os sacerdotes entoam laudes por entre vapores e cheiros
de incenso que pesam na humidade sombria da mastaba.
Lá fora, à sombra dos sicómoros e palmeiras,
fustigado pelo vento agreste e quente do deserto,
o povo anónimo reza e carpe e não entende
por que razão a vida dos deuses também se acaba.
Súplice e harmoniosa, ouve-se a voz de Ísis:
«Ditoso Geb, meu Pai! Recolhi ao longo do Nilo, como ordenastes, (1)
a cabeça, o tronco, e à excepção de um, todos os membros (2)
de meu amado esposo, e erigi nas margens de cada local celsos templos.
Vós que sois da Terra o grande deus,
dai vida ao vosso filho, meu extremoso marido e gémeo irmão,
que jaz inerte e frio nesta câmara mortuária.
E vós, Nut, Mãe amada, deusa dos Céus,
que sois da Noite luminária,
fazei com que o virtuoso falo que com as argilas do Nilo moldei
devolva a meu amado esposo a virilidade originária.»
«Nobre Filha minha! Quando no primeiro dia de Thoth a noite for a meio, (3)
transformada em águia, conhecerás de novo Osíris, que íntegro ressuscitará. (4)
E um deus nascerá desse maravilhoso enleio.
Hórus será o seu nome, e terá por coroa o Sol dos Céus!
Será belo e terá corpo de homem e cabeça de falcão.
Derrotará o traidor Seth, e governará o Egipto com ceptro e sábia mão.
Ele será a luz destes reinos, e da sua árvore nascerão os faraós!
Assim me falou Geb, teu Pai! Cumpra-se o que fica dito!
Que Seth seja anátema e pasto do eterno fogo
e que regresse Osíris, teu adorado esposo
que de novo ensinará o bom povo do Egipto
a pescar, a plantar a vinha e a semear o trigo.»
«Oh, estimado esposo, terno amante!
Imensa é a saudade dos teus olhos e dos teus beijos!
Perpétua é a minha sede da tua virilidade e da fúria da tua língua!
Vem a mim, amor meu, e cumpre os meus desejos!
Satisfaz esta louca espera, que do quente consolo morre à míngua.
Vem, Rei Primeiro, deus bom da fertilidade e do Mundo do Além!
Eu, a tua amada Ísis, aguardo o teu regresso!
Porque, Amor meu, os deuses não morrem!
Oh, que saudades das mornas noites de Mênfis,
quando o luar do deserto destoucava os meus cabelos,
que afagavas até à alvorada das estrelas!
Na tua falta, sonho os nossos corpos nus, em êxtase eterno
e sinto as tuas mãos em terna errância sobre o veludo da minha pele,
em mil carícias, na busca conseguida da culminância.
Está escrito nas linhas do Céu que me amarás de novo
e que o meu feminino corpo se entregará e se fundirá no teu!
Oh, como foi grande a minha dor na tua procura!
Que se cumpra agora a vontade de nossos Pais!
Que o teu divino corpo reunido com ternura ressuscite destes bálsamos
e a ele se junte teu sacro falo,
que com tanto amor e desvelo moldei em escultura!
Assim seja!»
(texto inspirado na lenda “Ísis e Osíris”, de Plutarco)
(1) - Geb – deus egípcio da Terra, irmão e esposo de Nut, deusa do Céu e da Noite. São pais de Osíris e Ísis.
(2) – Após Seth, irmão de Osíris, ter lançado o seu corpo esquartejado ao Nilo, a desventurada Ísis procurou-o pacientemente pelas margens do Nilo e costas do agora Mediterrâneo, até Byblos, a actual Jebail do Líbano. Conseguiu reunir todos os bocados, à excepção do “phallus” que, segundo algumas fontes mitológicas, terá sido comido por um peixe.
(3) - Thoth era o 1º mês do Calendário Egípcio.
(4) - Ísis disfarçou-se de águia. Hórus, o filho, é representado com cabeça de falcão, razão por que também é denominado por deus-falcão.
"Gülümcan" (desconheço o nome do compositor (turco),
bem como os nomes dos intérpretes).
estou deitado sobre a liquidez da tarde. sem pausas. um feixe de luz incide sobre as colinas e a verdejante várzea, aquém do delta. silencioso e trémulo sob o trigal dos dias, sou a raiz sobressaindo dos lábios secos da terra. descalço, elevo-me na vertical, até ao zénite, e regresso, suspendendo-me das teias labirínticas do véspero. tacteio o chão. é longo e nu o abraço libertador que me prende. um olhar quente e generoso é mais que suficiente nesta caminhada. amor e submissão na prece consentida. um mergulho de respiração e pétalas sobre a planura. nada é mais real e imutável que a tez macia do desejo. existe a probabilidade de as coisas improváveis acontecerem. disse-o aristóteles na sua poética. e eu creio firmemente em aristóteles. a verdade da minha imaginação é a minha única realidade. sei que é este o caminho. e mais nenhum.
Sempre que perco a confiança nos humanos, ganho-a nas estrelas.
Como neste preciso momento.
Abro a janela que dá para o sul: os Três Reis Magos, na bela Orion, definem uma curva aberta com a alfa do Cão Maior, a fulgurante Sírio, curva que continua em arco de ferradura pela alfa do Cão Menor, a pulcra Procyon, e avança pelos leais Gémeos Pólux e Castor, seguindo em frente – na presente conjuntura - até ao anelado Saturno.
E, rociados, os meus olhos sorriem de novo, confiantes na terna placitude que baixa do oceano nocturno.
Eros e Psique,escultura em mármore de Antonio Canova.
Eros e Psique
Brotam intemporais e doces as linhas esculturais e perfeitas que definem o corpo voluptuoso e o rosto sensual das deusas.
Na caligrafia virgem do seu corpo juvenil a princesa Psique conduzida pelo brando Zéfiro aguardou que o seu amado Eros descesse as escadas do Olimpo e a tomasse nos seus braços para a desposar e amar na raiz de fogo e trigo dos seus anelos.
[A estirpe helénica e ática da beleza na sensualidade contínua de um rosto de mulher]
Tomaso Albinoni - Sonata em sol menor - "Adagio" (1740)
da inutilidade da minha “poesia”
quando os meus pés doridos dos áridos caminhos da vida agreste se quedarem na necrópole sagrada a dois metros da neve que imaculada cai sobre o cipreste as aves da noite silenciarão e sob o luar de mármore os lamentos ouvirão daquele que não foi daquele que não fez daquele que morreu antes de ter nascido se é que nasceu alguma vez.
Um fluxo de dólares e de sangue jorrando sobre a Mesopotâmia. Um sino de fogo embutido nos umbrais do deserto. E a fúria insana. O crude golfando sobre o equinócio num concerto de morte.
E há falcões. Falcões que dançam e pairam sobre os soluços do amanhecer sangrento. Talvez abutres.
Fogo e cinzas calcinadas, estilhaços, gritos, pedaços de argila. A morte galopando sobre as cidades. Não há palavras. Apenas armas.
Breve, um talismã tomba sobre o asfalto. Um turbante esvoaça, branco, sob o luar negro de fumo. Calou-se a flauta de vento que flébil gemia sob a tamareira. Eternos e piedosos, a Lua e Vénus velando a morte.
Cessaram os sorrisos no país de Aladino. Sangue e lágrimas, apenas. Um sem-fim de covas e cemitérios e morte. A face lúgubre e sombria do fim.
Onde as crianças acordadas no seu sonho peregrino? Onde o berço da civilização? Onde a justiça? Onde Babilónia, a dos Jardins Suspensos? Onde as palavras que brotaram da argila? Onde a água de sonho do Tigre? Onde os pássaros voando na brisa levantina? Onde as chispas de oiro e prata das águas de espelhos do Eufrates ora tintas de sangue? Onde a mulher que embalava no berço o seu menino de olhos de mel? Onde o menino? Onde a Babel?
A coberto dos ventos de opróbrio e azeviche, nabucodonosores de barro tombam -outros elevam-se! - no resvalo da pedra de Sísifo. Será tarde, muito tarde, quando trepidantes de náusea os corcéis de fogo do Apocalipse migrarem para o frio na companhia dos pássaros cruéis.
O verbo distorcido aguarda, receoso, a frieza invencível da razão clara. Viscoso e mole o mutismo dos homens flanqueia a gelatina estática do caos. Fenece, a pouco e pouco, o país de Gilgamesh.
Franz Schubert,"O canto do cisne", D.957, fragm. "Serenata"
Antes, quando ali entrava, sentia que um doce calor invadia suavemente o seu corpo, desconhecendo, nesses momentos de serenidade, onde pernoitava a solidão. E muitas vezes as palavras brincavam consigo na frescura das sílabas, e cintilavam e fugiam e voltavam a aparecer sob os seus dedos. Agora, um estranho e penetrante algor perpassa o seu coração e invade todo o seu corpo, pairando, hesitante, sobre as suas mãos trémulas, num prenúncio de absurda invernia, quando é certo que lá fora a chuva há muito cessou, o céu azul voltou, e as amarras de Eolo cingem vigorosamente o bóreas, transformando-o no brando e perfumado zéfiro que agita suavemente as folhas das frondosas tílias do largo fronteiriço...
(Se não fosse o amor que a tudo incita Leandro não morreria afogado no Helesponto nem Hero sucumbiria nas mesmas águas morta pela mágoa lancinante da sua desdita.)
Eu, nómada errante, que só tenho à minha frente o abrasante deserto ondulante, sufocante, com o meu coração palpitante sob o Sol rutilante, ofuscante, procuro-te… Mas não te encontro!
Eu, solitário navegante, sulco o serpenteante rio de montante a jusante e, qual almirante mareante, procuro-te no infindo mar bramante, espumante, mas porque estás distante qual fulgurante diamante… Não te encontro!
Eu, que no crepúsculo agonizante te procuro sob a procela troante, retumbante, e demando o teu semblante na noite apavorante, na ausência do bruxuleante círio, da cintilante estrela e do luar minguante, cativante, eu que quero contemplar-te nos incêndios da brilhante aurora levante, flamejante… Não te encontro!
Eu, que intento descortinar-te na gigante cidade trepidante, trasbordante, e na pacata aldeia branquejante, fumegante, que clamo por ti ao vento uivante, e ele, decepcionante, nada me diz e, ululante, passa adiante… Não te encontro!
Eu, qual cavaleiro andante, que te procuro na dedálea rota nevada de Kathmandu, alvejante, serpejante, na frondejante floresta amazónica e no fascinante tando africano verdejante, vicejante… Não te encontro!
Eu, que sobre o teu paradeiro consulto a pujante Primavera deslumbrante, refrescante, que interrogo o escaldante Verão secante, causticante, que te procuro no silêncio vacilante do hesitante Outono e pergunto por ti à folha declinante, voante, dançante, e questiono o trovejante Inverno murmurante, cortante… Não te encontro!
Eu, que inquiro a itinerante abelha edificante, fabricante, e interrogo a ambulante borboleta irisante, mutante, que pergunto por ti à estridulante cigarra cantante, sonante, e à emigrante andorinha rasante, circulante… Não te encontro!
Eu, que indago a tua morada à viajante Lua amante, inebriante, e ao possante Júpiter triunfante, iluminante, que interpelo a irradiante Sírio e o dardejante Sol flamejante, coruscante… E todos me respondem com enigmáticas parábolas, alegorias e símiles que não consigo decifrar. Contra meu talante... Não te encontro!
Impõem-se-me assim o cepticismo de Pirron de Élis, o estoicismo de Zenão de Cítio, a ascese contemplativa de Platão, mas ainda, e sempre, a esperança do lume vivo dos teus olhos.
uma sede de rosas. uma sede tantálica, silenciosa, como uma brasa ardente queimando. incendiando as memórias, constante. como uma inflorescência de cactos abrindo a noite. cingida de espinhos, o silêncio perfurando. e a carne. em labaredas algemada, arfante, felina. agrilhoada, salina de sangue, vibrante.
na ausência de uma frescura de rosas, sinal algum pulsa a meu favor. nem a fresca brisa que afaga os cactos mansos.
a única luz que fulgura e subsiste é a do fanal do fragoso rochedo que esquadria as brumas e os mares de escolhos da minha noite negra povoada de medos: - a saudade dos teus olhos.
[quem diz que a larga ausência causa olvido, ignora que a saudade tem memória]
muito cedo anoiteceu aquele dia. era inverno em ítaca, e todavia eram incêndios as suas bocas. dir-se-ia que a febre os consumia e no entanto era um amor de mil sóis que enfebrecia por entre o azul da noite e a alvura dos lençóis.
e de tal maneira a paixão tal como dantes tanto e tanto escandecia que acendia de brilhos a escuridão na silente geometria do seu manto. entretanto, por decisão de eros e afrodite, muito tarde raiou a manhã do novo dia.
[num tempo inteiro de espera e de silêncio sob os pórticos de um palácio envelhecido, jamais da longa ausência o desleal olvido. mais do que um manto era o fogo do amor que entretecias; mais do que flecha era a chama da paixão que arremetia.]
sou o grito selvagem e sem amarras roubado a Munch. sigo sem tropeços nos vincos do vento e diluo-me no horizonte de gesto e espuma que acaricia as colinas acerejadas. as mesmas que, protegido pelas arestas da noite, furtei a Courbet. (l)
mas porque o beijo é uma pétala por cumprir, a Rodin nada roubei.
(1)"La Femme dans les vagues" (1868)
Peinture à l'huile sur toile
Artiste : Jean-Désiré-Gustave Courbet
Ah, pudesse eu ser início, a chuva, o vento, o breve relâmpago ou a resplandecente alvorada de onde brotam todas as coisas!
Ser talvez um reflexo de tempo e de sol sobre a vertigem da gota de orvalho que cintila sobre os espelhos da madrugada.
Ser a ponte pênsil sobre o vazio ou porventura a quietude indecisa do nada.
Ah, pudesse eu ser a palavra ou o sinal do vento estranho que escolta a ave que no outono emigra num rumo de primaveras e árvores verdes numa façanha irisada de infinitos!
Ah, pudesse eu entrar pela estrela de alva e ouvir uma voz nítida e doce pairando sobre a quietude do solstício num anúncio de aconchego e de Natal!
Ah, mas não sou, não posso ser, nem ouço essa voz… e assim me calo.
Não obstante...
Há algo de diferente no círculo luminoso do Natal. Algo radioso e belo que, furtivo, se insinua num despertar tranquilo e sem lamentos. Como se as estrelas embutidas no firmamento até nós descessem, inconscientes, para fazer parte da nossa carne e da nossa mente.
Arcangelo Corelli (Italia, 1653-1713), "12 Sonatas para violino, violoncelo e clavicórdio", Fragmento "nº 12, La Follia".
o meu diospireiro
hoje, soube de um frágil diospireiro que deixou amarelecer as folhas muito antes do tempo caduco que se abeira. e segredei às sua esmaecidas brácteas – algumas rastejando secas pelo chão – que nos encontramos na morna quietude de setembro e que ainda está longe o vento frio que soprará das esquinas agudas e invernais do tempo.
e pedi-lhe que o confirmasse no olor salubre e quente que emanava das glaucas folhas da vizinha figueira que embora caducas como as suas se mantinham unidas aos ramos como pecioladas bandeiras.
apesar do estridular persistente duma cigarra que teimava em certificar que a nosso lado corre o estio, pareceu-me ouvir um breve cicio vindo do meu diospireiro.
« - tenho a dizer-te que sou a árvore do fruto do divino fogo e que perco as folhas na antevisão das geadas e do sopro gélido dos ventos dominantes e agrestes que se aproximam e me derrubariam se continuasse vestido. dispo-me para dormir mais sossegado por entre os acolhedores lençóis da terra.
acordarei na primavera e darei de novo amplas folhas verdejantes, belas flores campanuladas e suculentos frutos de fogo para tua alegria e consolo. lembrar-te-ás, então, que as minhas folhas não morrem e que simplesmente emigram para a terra-mãe como as andorinhas»
reguei então o meu diospireiro na despedida do verão e sorri para uma caravana de formigas que azafamadas e impávidas ao canto e desgoverno da cigarra transportavam o grão para o seu celeiro de inverno.
entendi bem o recado do meu diospireiro:
antes do fim do outono terei o cuidado de o proteger das túrbidas procelas e das geadas, pois que as árvores, tais como as andorinhas, sabem dos caminhos labirínticos do tempo. só que não têm asas.
"Ora (direis) ouvir estrelas! Certo Perdestes o senso!" E eu vos direi, no entanto, Que, para ouvi-las, muita vez desperto E abro as janelas, pálido de espanto ...
E conversamos toda a noite, enquanto A via láctea, como um pálio aberto, Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto, Inda as procuro pelo céu deserto.
Direis agora: "Tresloucado amigo! Que conversas com elas? Que sentido Tem o que dizem, quando estão contigo?"
E eu vos direi: "Amai para entendê-las! Pois só quem ama pode ter ouvido Capaz de ouvir e de entender estrelas."
"Homem e Mulher contemplando a Lua" Casper David Friedrich
Ao luar
Quando à noite o teu rosto sob a lua doce fulgura sob as buganvílias e te ouço dizer “serei sempre tua” tanto nos sonhos como nas vigílias, hauro o teu olor que a brisa acentua no doce aroma das frondosas tílias. Dos teus lábios, entanto, é tanta a sede, que me enchem de saudade que não cede.
O desejo contente e descontente em que sempre te tenho sem te ter é lava que em mim lavra tão ardente que não sei se é dor ou se é prazer ter, não tendo, o teu corpo de nubente, no fogo que me queima sem se ver.
[Este amor, que extravasa o universo, é paixão que não cabe em simples verso.]
desfruta o dia navega-o dobra-o acende-o respira-o despe-o de nuvens e neblinas e molda-o à tua vontade na curva do teu colo
quebra-lhe as incertezas as raízes de tons cinzentos reinventa-o no ritmo vigoroso dos violinos de Vivaldi no voo das aves na nudez da brisa azul na luz marítima da água na alvura dos nenúfares no oiro dos girassóis no fogo das laranjas
e um morango de sol brilhará para ti na superfície polida da tua manhã aberta e azulina
há um choro granítico, silencioso, que pende hialino das paredes húmidas.
lágrimas e rugas apenas.
na vertical do meio-dia, da nora os mouriscos gemidos. numa esperança de sol, êxtase são as lágrimas e os limos. companheiras as estilhas de luz que tombam rente aos salpicos de água na cintilação ocre dos alcatruzes. um colar de pranto e argila sob a figueira brava.
da noite, o manto e os pássaros. num retorno ao mel e ao verde quase azul, o cabelo de vénus refulge de doçura sob o agosto de um quarto de lua.
do dia, a ignescência do sol e a quietude do vento em sonhos de água de brilho intenso.
fotossíntese das minhas utopias, dás-me a beber, serena capilária, na respiração solitária do teu silêncio, da esperança a doce clorofila.
na vertigem de espelhos do teu poço-oásis habitas-me assim, cappillus veneris, em inconsciente e etéreo delírio, as raízes mais profundas da minha alma.
[1]- Cabelo de Vénus. "Adiantum cappillus-Veneris" (Lin.) - Planta herbácia medicinal, também chamada capilária e avenca, que cresce nos sítios sombrios e húmidos do País (v.g. poços, minas, rochedos húmidos).
"...tirando a cada momento da algibeira rebuçados de avenca para o catarro" (Eça de Queirós, "O Primo Basílio)
eu choro o homem que morreu no ventre da terra-mãe em busca do vil metal, seja ele o ferro, o ouro ou o carvão, e que não teve tempo de ver crescer os filhos nem conhecer a fluidez do colorido quente do verão ou os magoados tons de violeta e sépia de que se veste o ameno e lânguido outono.
Pretendo com este “post” prestar uma humilde homenagem aos que, debaixo da terra, extraem o vil metal que comanda a vida dos que estão à superfície, tantas vezes a troco da própria vida (dos mineiros).
Dedico-o, por extensão, aos cerca de dois milhões de homens e mulheres – e crianças! – que, segundo a OIT, morrem anualmente em todo o Globo, vítimas de acidentes de trabalho e de doenças profissionais.
Só alguns exemplos (refererirei, para simplificar, somente os mineiros chineses, por serem os mais atingidos, e também por a ideia de este "post" ter surgido após o recente acidente verificado numa mina da China Central, como refiro no final deste escrito).
No primeiro semestre de 2007, cerca de 1800 trabalhadores morreram em acidentes ocorridos em minas chinesas, de acordo com uma estatística publicada pela imprensa estatal.
Fonte: Rádio Renascença, Portugal
De referir que nos anos de 2004, 2005 e 2006 as mortes nas minas chinesas atingiram, segundo fontes governamentais um total de cerca de 14 000 mineiros.
(fontes consultadas: RTP, Lusa e Folha Online)
No entanto, e de acordo com estatísticas não governamentais, aquele número ultrapassará 27 000 mortos.
P.S.: entretanto, uma boa notícia: foram resgatados com vida os 69 trabalhadores recentemente enclausurados durante 3 dias na mina de carvão de Zhijian, na província central de Henan, China, devido a fortes inundações de água.